Ontem vendi meu cavalo... Foi o final de uma etapa Da vida deste peão; Ontem vendi meu cavalo... Com ele vendi meus sonhos, Minha história de campeiro E o resto de uma ilusão. Quando peonava na estância Não tinha lida ou distância Que meu pingo refugasse; Cruzava rios transbordando, Pechava touro escarvando, Como uma carga avançando Sem força que o recuasse. Me lembro bem, certa feita, A sorte parou-se estreita Quando um brasino fumaça Quis enfrentar, por pirraça, A carga do meu cavalo; Os chifres negros da fera Fizeram riscos no couro, Mas ao passar pelo mouro Afocinhou num pealo. Foi num final de verão Que a tropilha dos alçados Ia chegando dos lados Da fronteira da Argentina; Sessenta potros crioulos Quase brotando os colmilhos, Mouros, gateados, tordilhos, Com massarocas na crina. A tropilha recolhida, Empeçou-se a maior lida De pealos, laço e tirão; Tesouras ágeis cortando, Buçais de couro cerrando E cascos riscando o chão. Bem num canto da mangueira Parado na minha frente, Com orelhas de tesoura, Olhar de tigre valente; Bordando a pelagem moura Reflecos de noite escura, Era um misto de ternura Com nobreza inteligente. Marcou pra mim essa cena: Frente a frente, ali parados, Nós, os dois, paralisados Na magia do momento; Do fascínio ao pensamento De tê-lo pra os meus arreios, Já me senti nos rodeios Com estampa de um monumento. Não precisou que mandassem, Apartei ele pra mim, Nunca vi um bagual assim Com horizontes no olhar; Pateava trevos no andar, Tranqueando feito um monarca, Mandei que pulassem a tarca Quando empeçaram a contar. Quem tem um mouro de arreio Entende bem o que falo, Arrocinado o cavalo Depois de muita peleia; Depois de gastar maneia E rosetas de chilena, Quedou-se manso, o ventena, Nem por reza corcoveia. E foi assim que a lo largo O tempo passou de pressa, Cada dia uma promessa De que a vida melhorasse; E sem notar que passasse, O tempo levou os dias, E as esperanças tardias Morreram sem que eu notasse. O campo, que era do gado, Dos cavalos, das ovelhas, Foi se entregando às parelhas De tratores e arados; Foram drenando os banhados, Foram aterrando as vertentes, E atropelando os viventes Para a beira dos povoados. Sobramos, eu e o mouro, Alpedos nos corredores, Tragando dos dissabores Que a vida nos serve às taças; Andam de bando as desgraças Quando a sorte bate as asas, Perdendo o rumo das casas As changas tornam-se escassas. Enfim, sobrou o arrebalde Com ruas de chão batido, Reunindo o povo sofrido Numa última quarteada; Chifres de vaca parada, Campeiros laçando a pé, E em ranchos de santa fé Mates de erva lavada. Na estância, a monocultura Varreu a vida nativa, A influência nociva Do interesse estrangeiro Manipulou por dinheiro, Comprando alma e consciência, Pra transformar a querência No mais cruel cativeiro. Então, vendi meu cavalo, Pois me restou a favela; Não quero ver da janela Pastando num rapador O mouro, que fez fiador Pra muita tropa morruda, Maltratar quem nos ajuda É um ato de desamor. Peço a Deus que olhe o mouro Como quem olha um vivente, Pois este pingo valente Vale mais que alguns sujeitos Que se julgam sem defeitos Mas vivem só na traição, Dão o tapa e escondem a mão Pra nunca serem suspeitos. E se algum dia o destino Da sorte me der a vasa De ter um campo, uma casa, Quero de novo comprá-lo; Será o maior regalo Da Divina Providência,