O Último Adeus

Guilherme Suman
                

Entro solene à beira da porta. Arrasto um corpo que pouco se importa Em dar a resposta se vive ou se é Apenas carcaça inútil e morta Que mal e se aguenta ficando de pé. A alma escapa num rio temperado De estranha amargura na sanga da vista Que molha e tortura tal chuva de outono. As pálpebras pesam um tipo de areia De dunas imensas na falta de sono. A roupa elegante, tão sóbria e tristonha: Um terno há tanto já obsoleto. O sangue não ferve no traje bonito, Binário nas cores em branco e preto. A gola pequena já meio aberta, Um nó na gravata sem dó do futuro, Um nó na garganta que tanto me aperta, E invés da alpargata, bombacha e lenço, Além de uma velha e rude boinita; Sapatos lustrados com plasta de graxa E uma fatiota de grife aflita. Eu entro engolindo o choro que volta, Afronto na porta o medo que alarma. E as mãos amanteigam suores intensos Ao passo que esfrego os dedos na palma. Os nervos agitam enquanto prossigo Um ritmo lento no passo e na alma, Além do silêncio de um rancho vazio. E entendo agora que o corpo é fruta Que cai por madura se a hora convém. A alma, porém, além, se perdura E passa contínua tal qual fosse rio. Na sala, retratos fabricam passados Pra quem vai ficar. E torna-se um rito Já de imediato fazer um contrato Pra tanto evitar que os olhos se topem Com cenas alegres de quem era perto E agora, por certo, não vai mais voltar. Na mesa, um pano de renda barata. Em cima, um pires e a xícara miúda Contendo há dias um líquido frio que apenas atrai pequenas formigas Ao fundo do poço de leite e café. Caçada em busca do açúcar mascavo - tesouro escondido - que rende a elas um trágico e doce naufrágio no fim. Penetro no quarto, um templo perdido De amores possíveis, de sonhos sem data, Compondo mil trilhos, supondo até nomes Pra por nalgum filho e as tréguas de brigas Em guerras fajutas só pra perdoar. O quarto me dói, me quebra por dentro. Parece que os ossos me pesam bem mais. Me parto ao meio e sento na cama; Refaço mil tramas que juntos vivemos. As mãos que já rangem a junta dos dedos Hesitam, mas pegam teu lindo pijama E cheiro o perfume que ainda se gruda Naquele tecido sem corpo algum. E abraço a peça que tanto vestia Tuas noites insones e, contra meu peito, A roupa partilha o aroma de ti. Teu lado direito, azul hemisfério na cama tão nossa, está por decreto, vazio para sempre, e neste critério O pranto se torna estranho missal. Rosário de penas, num choro discreto, Um salmo de água, tristeza e de sal. Enfim, te aceno num gesto finito. E tu, lá da porta, sorri para mim Enquanto tu partes pra parte nenhuma Só resta o silêncio doendo no fim. Eu rezo uma prece e peço por trégua a quem quer que seja aquele que chamam De Pai ou de Deus. E ela, risonha, enfim, vai embora e se evapora num último adeus.