Elo Perdido

José Luiz Flores Moró
                

Um ar de bruma entre a janela aberta contrastando o sol em primavera que o setembro derruba na manhã... O pai-de-fogo morrendo no galpão embaçando a alma triste do tição, num véu nefasto de negro picumã! Movimentos suaves no que resta da sobra de fumaça impertinente, qual um fio de prata intermitente sobre o cadáver funesto do carvão... Cinzas esfriando, enternecidas, também acenam toscas despedidas sobre os escombros negros do fogão! Um ar dizendo silêncios de museu... Alguns trastes na parede, pendurados, sobre pregos antigos, enferrujados, parece que se movem entristecidos... São esqueletos vivos do passado morrendo aos poucos enclausurados nas covas funerais dos excluídos! Na paisagem dessa escura solidão, um par de botas espia, ressequida... Por entre a poeira dos anos, esquecida num canto obscuro junto ao catre... Uma cuia com a erva amanhecida ainda mostra que existiu alguma vida, que esbrugou, também, junto com o mate! Um lenço cor de sangue, maragato, que foi bandeira de pátria e ideal, tremula desbotado num varal, carcomido de traças e formigas... A guaiaca que guardava fartas “platas”, hoje, sem o peso das patacas, é um simples contorno de barrigas! Um pé de espora num gancho, descartado, com o papagaio gasto e retorcido preso a um couro seco e mal curtido, expõe falhas de dentes nas rosetas que se cravaram no lombo dos aporreados que, talvez por maulas mal domados, ainda os trazem na entranha das paletas! Uma tesoura de tosa descartada pela força motriz de uma comparsa é mais um caco antigo que disfarça a inércia de quem teve utilidade... Uma bombacha rendada de abandono busca pelo corpo do seu dono que se perdeu nos rumos da cidade! Um ferro de marcar e uma cambona jogados pelo chão, entreverados, como dois saudosos namorados, relembram o calor de suas brasas... Um laço doze braças enrodilhado procura pelas mãos que, no passado, impulsionaram o ruflo de suas asas! No cavalete descansam alguns pelegos! Como encilha de um lombo imaginário e no fundo empoeirado de um armário avios de fogo e ganchos de panelas... Na parede, encostados, dois espetos pairam no desuso, obsoletos, pela ausência da graxa das costelas! Um chapéu campeiro, um barbicacho, um relho e um poncho de três panos, que nas trincheiras fatídicas dos anos, acenaram o lenço branco em rendição... Pelo ar, um murmúrio de lamento num toque de clarins que sopra o vento varando pelas frestas do galpão... Lá fora uma porteira range os dentes como quem quer soltar-se pela estrada buscando quem partiu em retirada... Num momento qualquer, futuro afora... Na garganta de um portal indefinido, o galpão vai se tornando um elo perdido... entre os trastes do ontem e os de agora!