As Asas de Don Negro

Danilo Kuhn
                

A noite alta na pampa encobria, com seu manto, poesia e acalanto e sua negra estampa, lá, onde o silêncio acampa, pelas sombras sem luar... Ex-escravo, sem lugar, que a própria sorte condena, cativo de suas penas, Don Negro, preto-sem-lar. Trazia, na pele, a noite. Os olhos? Duas estrelas a vagar pelas veredas, esmaecidas de açoite, emponchadas no horizonte. Don Negro era a escuridão que as chagas da escravidão enlutaram em sua alma. A memória, feito algema, aprisiona em seu grilhão. A liberdade tardia não lhe deixara outra trilha senão sua sina andarilha e o passado ainda ardia quando as plumas da poesia envolveram o alforriado. Não mais correntes, cadeados, nem ferro quente nem brasas, pois Don Negro ganhou asas, transformando noite em dia. Sua alma amanheceu em matizes de aquarela e sua poesia, singela, do poço do amor bebeu. Vestiu palavras de céu pra encantar sua amada e a musa, apaixonada, entregou-se ao poeta, pele alva, feito pétala de uma flor de margarida. Mas o romance impensado, entre o negro e a branca flor, hino ao elo do amor, despertou o desagrado de um coração sangrado e o que era luz e paixão revolveu escuridão. Ferido de tantos cortes, cortejou a própria morte o poeta em provação. A flor tingiu-se de rubro, desfaleceu em seu abraço e, pungido do mesmo aço, cerrou os olhos Don Negro. O anjo de asas negras, em derradeiro poema, fez do amor a sua pena e virou brisa e canção, soprando na imensidão a embalar cantilenas... A noite alta na pampa encobria, com seu manto, poesia e acalanto... Mas, donde a lua descamba, a sua negra estampa no infinito renasceu, cingindo estrelas no céu. Don Negro, poeta mouro, alçou seu último voo na pena sangrando breu.