A Cor do Pago

Edson Marcelo Spode
                

No linguajar do meu povo De xucreza carregado Aflora o nosso passado, Forjado assim sem retovo, Com gosto de mate novo De golpe amargo de fato E cheiro de campo e mato Parido em meio à macega Mas, na cor ele carrega, A pelagem de um mulato. Nas lidas da minha gente, Tocadas de forma guapa, Nenhuma ordem escapa E o patrão é o presidente. Já está no piá a semente Que germina “ pro” serviço Do serrano ao fronteiriço Tudo é cumprido com zelo E se a lida tiver pelo Com certeza é de mestiço. No saber desses sulinos, De pai pra filho ajoujado Passa o macete cancheado Dos tauras, cueras mais finos Que no atalho dos ensinos, Num saber meio bastardo, Aliviaram esse fardo De quem não tem faculdade E esse saber, na verdade, Tem a cor de um índio pardo. No cantar de meus patrícios Xote, rancheira ou milonga Toda essa pampa ressonga. Por fartos nossos munícios E já parte desses vícios Que todo gaúcho figura, Desde o berço à sepultura Com notas bem no costado E a voz do pampa sagrado Tem a cor da noite escura. No pelear desses gaudérios De braço, adaga ou lança, Tiram a morte pra dança Num namoro sem mistérios Que a fome dos cemitérios Com os valentes se agrada. Mas na última trompada Um se leva por travesseiro E se tem cor o salseiro, Por certo é amorenada. Na educação da gauchada De reverência sincera, Nenhum diploma acolhera E nem formação doutorada, A essa instrução que foi dada Numa morada posteira Pela indiada mui campeira Com baldas de professor E se a tarimba tem cor, Creio que seja trigueira. Nos costumes dessa indiada Já por séculos cultuados Todos nascem lambuzados Desde a primeira palmada. A nossa cria é desmamada Sem cangalha ou tabuleta, Mas segue mamando a teta Das coisas de nosso chão. E a lonca da tradição, Tenho pra mim que é preta Na família dos paisanos, O mais sagrado reduto, Está o esteio absoluto De resistência aos profanos, Porque no sangue, hermanos, Pulsa mais que a filiação E, em nossa formação Como povo e como Estado, Se a rigor é colorado, Foi quase a cor de um tição. Na poesia desses cueras Sextilha, décima....oitava, O riograndense se lava Na sanga de outras eras, Água clara das taperas Manancial de arte sagrada, Onde murmura a payada Com jujos de curandeiro E a cor do verso campeiro, Sempre foi acrioulada. Nas bailantas de meus pampas, Lamparina e chão batido Bailongo bueno, encardido De indiada batendo guampas, Enredados pelas trampas Da morena lambancenta Mas com cheiro que acalenta Quartuda que nem capincho E a pelagem do bochincho Meu patrício...é fumacenta. Na devoção do pampeano, A crença que lhe governa, Divina ordem fraterna Temente ao Pai Soberano, De um altar no Vaticano A uma cruz no descampado, O mesmo ritual sagrado Nos cultos de minha gente, Na fé branca e transparente De lombo meio bronzeado. Essa é uma parte da herança Que os negros aqui deixaram Ao Rio Grande acolheraram Bem mais que golpes de lança E se aquela antiga aliança Comprou a sua vida fiado Hoje todo gaúcho honrado, Lhe deve, ao menos, respeito, Porque se olhares com jeito, É negro o pelo do Estado.