Depois do Beijo do Rio

Bianca Bergmam e Igor Silveira
                

O céu derramou seu pranto Por um mundo mal-cuidado... Chorou estrelas em raios, E ali deixou empoçado Todo o silêncio da vida, De quem se viu derrotado. Eu vi caírem gigantes do seu altar de marfim, Nos braços da correnteza, aqui, bem perto de mim. Eu vi telhados ruindo sobre cristãos e ateus, E os alicerces da Terra, pedindo forças pra Deus. A água não escolheu por cor e nem faixa etária... Não fez distinção de crença e nem de conta bancária; Apenas caiu, rolando, tomando cada vazio, E tudo foi afogado depois do beijo do Rio. Eu vi boiadas perdidas Serpenteando à própria sorte. Vagando a esmo, berrando, No redemoinho da morte. Eu vi campeiros ilhados, Distantes das suas encilhas, Voltando em botes e barcos, Pra resgatar suas tropilhas. Vi tantas pontes caindo, Lavouras sendo lavadas, E a esperança no leme, De balsas desgovernadas. Mirei os olhos da morte, com minha alma insurgente. Remei meu barco, sem medo, e fui buscar tanta gente, Mas meu ranchinho, parceiro, caiu na goela da enchente. Os meus sonhos mastigados, destroçados feito eu, Seguiram remando em frente nos rumos que a vida deu. Talvez por ser um fantasma, Quando as águas me chamaram, Provei dos tantos horrores que os jornais não mostraram. Mas vi a força materna vencer a força da encosta... Feito uma “tigra” guerreira, Com seu tigrinho nas costas. Eu vi tantos sobrenomes estampando noticiários, Politicando as palavras de seus correligionários, Enquanto um homem, sem nome, Na hora do lusco fusco, Jogou sua vida nas águas, Salvando a vida de um cusco. O vidro negro da noite prendeu o mundo em seu breu, Na madrugada mais fria, que nestes tempos se deu. Garras afiadas de morte, a negacear os cansados... Almas sedentas de vida a resistir nos telhados. Quem vê de longe, imagina, Por certo sem ter noção, O medo e o desespero já desnorteando a razão, De quem campeava algum galho, Por tábua de salvação. E assim eu vi tantas coisas... E assim me vi tão pequeno. Vi olhos cheios de esperas Driblando sal e sereno. Até que as águas baixaram... O rio voltou para a caixa E a esperança do povo, Sorriu abrindo suas asas. Contraditando a verdade, Desse momento tão mudo, Pensei que eu não tinha nada E acabo de perder tudo. Mas entre escombros deixados Por entre a lama estendida, Não há silêncio de morte, Que cale o canto da vida. O mundo que conhecemos Ficou pra sempre pra trás Nos tijolos que se foram, Pedras, pontes, meios fios. Nos resta olhar pra frente... Nos resta seguir em frente... Enquanto braços cansados Vão construindo outros rumos, Sobrevivendo de esperas, Resiliência e de fé... A cada dia vencido, A cada passo que é dado, Afiando os sonhos da alma Seguimos nós, fio a fio, Reconstruindo a esperança, Tomando cada vazio, Porque existe um futuro, Depois do beijo do Rio.