A Mangueira e o Simplício

Rafael Ferreira
                

Mangueira feita de pedra, Com a dureza resistente, Teimosa segue presente Neste chão que está mudado. Outros donos, nenhum gado... E ao rebrotar das ganâncias Os traços da velha estância Aos poucos são apagados. Cravada no campo bruto, Num rincão recém-comprado, Habitante do passado, Tosca forma em permanência, Sem a genuína excelência De arrinconar rebeldias, A julgam sem serventia, Junto da nova querência. Um patrãozinho, engomado, Ordena o dito desmanche, A mão da draga que avance A derrubar a trincheira. Pra não restar nem a poeira, Curtida de esterco e baba, E do brete meia-água Salvem a boa madeira. Simplício, um “home” antigo, Criado ali na Socorro, Chega baixo, igual cachorro, Mas contesta a ordenança, Pra que não haja matança, De história e antepassado, Pede que deixem empedrado Este curral de lembranças. Mal sabia, o Simplício, Que ele também era um resto, E por torpe e rude o gesto Ficou no pago de esmola. Simplício sem ter escola, Não teve rancho e nem prenda, Nasceu na velha fazenda, Por velho, não se consola. Vive preso em rebeldias, Maneado em desesperanças, Parado em suas andanças (Não mais que os cantos da casa), No peito, o vapor da brasa Toca o trem desenfreado, Pois tudo lhe foi tirado E até o silêncio lhe arrasa. O jovem explica a Simplício, Num tom de menosprezar, Que ali é o melhor lugar Pra se erguer o pavilhão, Vai abrigar a evolução, Das contas de milionário, Ali ficará o maquinário, Pra lidar com a plantação. Ronca forte, em atropelo, A mão em concha de ferro, Leva pedra, barro e berro, Leva rastros de cavalos, Leva domingos de pealos, Leva o canto dos apartes, Varrendo a última parte Da herança dos vassalos. Tamanha cova se abre, Para enterrar o pregresso, Elimina-se um recesso Para os avanços mundanos. Se ali cruzaram ciclanos, Conhecedores, campeiros, De pouco importa o taipeiro, Isso morreu com os anos. Da morte, ninguém se livra, Pra alguns é medo, ou cura, Se alguém foge, outro procura. Da ceifa de feiticeira Vem a laçada certeira, Achar na goela, o munício E pendurar o Simplício Na forquilha da aroeira. Como um indigente do tempo, Numa cruz feita em madeira, Plantaram abaixo a figueira O negro velho ancião, Sem alarme ou comoção, Longe de olhares e crenças, Taxaram a morte por doença Chamada de depressão. Mas foi muito mais que isso, Foi um assalto sem armas, Foram massacres sem carmas, Foram pedaços arrancados, Ficou um peito retalhado, Na garganta uma vingança, Emudecida na trança De um laço já remalhado. E a vida segue a quem fica, Com vícios e desamores, Com dinheiros sem valores, Com muito pouca paciência, Com gerações sem consciência, Memórias curtas, sem pena, Hoje aquele que condena É o de menor inocência. E os campos mudam de cor, De tipo e de fundamento, Mas seguem dando sustento Na intenção do início. É um contrato vitalício, Pois se tudo vem da terra, Tudo voltará pra ela, F Feito a mangueira e o Simplício.