I Em um prego amarronzado na parede Vai um quadro pequenino pendurado, Fazendo do passado mais presente Por guardar um ancião emoldurado. Havia nos seus olhos tão opacos, Lições que me ficaram por herança. E quando sinto que andejo meio fraco Eu me recordo de sua fala firme e mansa. O meu velho num registro meio apático Vai eterno no retrato tão estático, bem feitinho com a ponta de um carvão... Nada emana tanto quanto seu elã A cada mate em que tomamos de manhã Na quietude desse tímido galpão. II A moldura na madeira mastigada Pela fome desmedida dos cupins, Enquadra sua face amarelada Que agoniza no silêncio dos confins Ele parado me vigia de sua foto, Congelando a sisudez daquele cenho. Sua face artesanal que há tanto noto Se aviva na rudeza do desenho. Vez por outra até parece dar conselhos Pra quem teme confrontar os seus espelhos E que ainda necessita desse apoio. O pai - se parte, fica perto de algum jeito, Continua pra educar o seu preceito Que ecoa numa espécie de aboio. III E nessa fenda que contata as duas eras O velho me transmite a mansidão. Atravessa do outono à primavera Sem sofrer nenhum abalo da estação. Já eu aqui neste frio intermitente Que vem de dentro sem mudar o termostato, Entendo a solidão que invade a gente E me amparo na lição de seu retrato. Um viúvo que sozinho criou filhos E os manteve coerentes pelo trilho, Merece muito mais do que um soneto. Enquanto a saudade não se esvai, Eu aprendo tanto e tanto com meu pai, Mesmo sendo só um rosto em branco e preto. IV Solitário numa charla para dentro, Eu medito do meu jeito, de mansinho, Percebendo, toda vez que me concentro, Que a pele reaprende seus carinhos. Quando a luz de uma vela vacilante Emula sombras meio débeis e difusas, Me apego na memória flutuante Pra receber a tal saudade por intrusa. E prezo muito seu caráter e seu zelo, esperando toda hora para vê-lo Na lembrança que se tarda nunca trai. E quando aparece seu espectro Na ilusão que reencarna seu aspecto, Eu abraço a memória de meu pai. V E logo que esfumaça esse momento Pra virar outro recuerdo mais a frente, Suspendo meus acordos com o tempo, Espiando sua face na parede. Mais ao alto, o seu pálido retrato Ganha hoje tantas novas companhias: A natureza vem cumprir o seu contrato Ao me dar a mais perfeita das famílias. Moram novos rostos lado a lado Do meu velho que estava tão cansado De habitar aquele quadro tão discreto. Contigo um saber eu compartilho, Pois aprendo a ser melhor para meu filho Pra ensiná-lo a ser melhor como teu neto.