Partiu... Se foi embora ao romper da madrugada, Não levou as malas, nem se despediu. Só deixou pra trás dois ou três pertences, Um sonhar ausente, um lugar vazio. Por legado na sala deixou um retrato antigo. Sobre a cristaleira duas chaves velhas Que não sei ao certo nem porque existem?! Não servem pra nada nessas horas mortas! Não falam, não andam, não consolam, Não guardam memórias e não abrem portas. Deixou um cusco com olhar perdido A mirar a porta esperando o dono. Perdeu-se o dono por esses caminhos, Mas ao pobre cusco não cabe entender, Porque nessa noite quando a morte veio, Não sentiu seu cheiro, ou não quis saber?! Mas levou o dono... O dono do cusco, o dono da casa, O dono da vida, o dono de mim. Eu, que tudo sabia sobre seu passado, Que tudo sabia sobre seu presente, Hoje me dou conta que não sei de nada. Pois sempre fui tudo aquilo que ele era. Eu sempre fui tudo aquilo que ele quis que eu fosse. Eu segui seus dias e seus pensamentos, Feito quem se torna rastreador de sonhos, Andejando estradas que não foram suas, Só pra ter o gosto do que não é seu. Mas me agradava ser assim, confesso. Eu gostava tanto de seguir seus passos, De saber histórias, registrar memórias Pra depois lembrá-las pelas solidões. Eu respirava seus sorrisos de alegria E eu chorava feito ele toda vez Que me contava dos amores que partiam, Deixando ausências e saudades outra vez. Se foi a mãe, se foi o pai, se ia a vida... Se foram todos andejando novos trilhos; Mas quando o tempo, revelando as suas garras, Levou a amada e depois levou os filhos, Suas histórias se tomaram mais amargas, Pois navegava pelo mar dos esquecidos. O que fazia Deus no céu que não olhava E não lembrava que ele ainda estava aqui? Eternidade era ambição de tantos tolos, Ele era sábio, só queria enfim partir... Eu não queria que meu dono fosse embora, Pois ele era a razão de eu existir... Então não sei o que será de mim agora, A sombra inerte de um olhar que nunca chora, Qual um fantasma, renegando meu porvir. Quem abre a porta velha é o vento, Não são minhas mãos... Quem tange a guitarra é o vento, Não são minhas mãos... Meu dono foi embora com o vento, Sem minhas mãos... Eu volto para mim e me dou conta, Não tenho mãos! Nem mãos cheias, nem mãos vazias. Nem mãos limpas, nem mãos sujas... Não tenho mãos! Então porque essa sensação de mãos atadas No canto mais escuro da gaveta Enquanto o tempo vai virando as ampulhetas Assoviando um tom menor de solidão? Eu não consigo alimentar o cusco Eu não consigo segurar as chaves Talvez com elas abriria as portas Que me trariam sua humanidade. Agora entendo suas angústias tantas, Agora entendo seus desejos todos Porque aqui na escuridão eterna, Me sinto apenas só mais um dos tolos. Cheio de sonhos... calados... Pleno de estrelas...caídas... Cheio de planos...sem vida Pleno de rumos...sem fim. Órfão de um pai esquecido, Sem missa, sem inventário, Sem mais histórias, enfim... No fundo desta gaveta, Meu destino, meu calvário... Só mais um velho diário, Já sem o dono de mim!