A Chuva dos Livres

Paulo de Freitas Mendonça
                

O céu começa a nublar, cobrindo-se em nuvem densa Nesta hora ninguém pensa corre logo pro varal, arrisca a pressa na cerca fere o arame farpado, fecha as janelas e as portas, volta o olhar para dentro. Muitos parecem solúveis, rudes portais da certeza   Idosos cobrem espelhos, guardam tesouras e oram. A gurizada ignora quer contemplar o distinto, contudo, o redor se ofusca para o olhar de quem vê, Por isso, atende ordem seca da voz dura de quem sabe. E todos estão conscientes de que o tempo vai mudar. A nuvem espessa avança, igual, porém diferente. Não é mesmo piroclástica,  tampouco de temporal. É um bloco multicor que pinta tudo que encobre. Mesmo parecendo nobre, assusta os que não veem, desde os que não sabem bem até os donos da verdade.   Ninguém sente os eflúvios de algum prenúncio de chuva E isto apavora mais racionalistas e céticos. Já se fala em fim do mundo, dilúvio ou mão de Deus. Muitos, de olhos fechados, rezam os seus preconceitos sem ter certeza de nada, mas cheios de afirmações.   A nuvem, em pouco tempo, envolve todo ambiente. Entra atrás do horizonte sem sair do nascedouro, como uma crosta esférica para encobrir o planeta. Nunca alguém havia visto algo tão fenomenal. A maioria não vê por temor e egoísmo.   Somente os equilibristas, poetas, bêbados, loucos, corajosos, sonhadores, troveiros e menestréis testemunham o fenômeno de matiz inigualável. Eles dançam pela rua, cantam, recitam e beijam... brindam com flores e choram, extravasando emoção.   Todos procuram imagens que o vento na nuvem faz. Isto aumenta o mistério, porque depois de avistadas nada ali se desfaz, podem mudar de lugar e voar, mas todos podem apreciá-las com olhos interiores e absorver o primor emanado em cada luz.   Ouve-se a voz de um sábio: há de chover sobre nós... Também, das casas fechadas, muitas vozes de horror. Há quem prefere morrer, quem desmaia de temor... E uns poucos loucos cantando, vendo amor em cada cor, ignorando a censura dos profetas do pavor...   Se solta o primeiro pingo numa explosão de sapiência A vibração de euforia é sufocada por vozes de quem não olha pro ar e premedita o pior. É um pingo retangular que vem planando qual pluma gerando uma expectativa, demorando pra chegar.   Desce em bailado sublime que só em sonho se vê. Fascinando os olhares, dança sobre os que festejam e cai na mão do profeta, o mais antigo poeta, que o leva ao seu coração, olha, chora e o abraça. Há um magistral silêncio que nunca antes se fez.   Um verso de improviso ecoa sobre os silentes: Deus nos dá o Paraíso, nos ama e livres nos faz. Esta nuvem sobre nós é nada mais que Sua voz impressa a cada dia em todos santos rincões. Abramos os corações para uma chuva de livros.   Quem ergue as mãos para o céu recebe pingos de ouro, palavras eternizadas nos pergaminhos da vida, das mais celebres cabeças, das mentes mais criativas, dos mais distintos assuntos, dos mais variados estilos... Numa demonstração clara de que a vida é diversa. Chovem poesia, romance, narrativa, prosa e conto e quem descrê fica tonto diante de tudo que vê. Logo chegam ditadores dando ordens de soltura porque a cultura, o saber e a luz do conhecimento derrubam qualquer cimento que constrói a ditadura. Incrédulos vão às portas, abrem janelas, espiam, duvidam da sincronia que lhes entra na retina. Desprezam a sinfonia silenciosa em cada olhar. Apoiam aos ditadores pra que limpem o planeta com o rodo da inclemência, incinerando o saber. Sendo uma chuva de livros, o algoz se ajoelha em rogo. Ela é que apaga o fogo, que liberta os cativos. Possui canhões inventivos de raios e trovões de sonhos e horizontes risonhos de plena sabedoria, alagando a covardia do ilegítimo poder. Este poder só do ter, sem ser e sem conhecer. Do vencer só por vencer, tendo por fim dominar. O poder da arrogância que domina a ignorância, mas teme entrar no recinto do saber, um labirinto que não pode reprimir, deter, tampouco subjugar.   Há uma guerra de palavras: as duras da ditadura contra as da literatura - sublimes, suaves imagens, revestidas de mensagens dos mestres da arte pura As primeiras, imponentes, investem falso poder. As segundas, sugestivas, emolduram o saber. As letras da inteligência são lidas em vozes altas, sufocando as maulas ordens, os gritos da intolerância Os olhos da ignorância conduzem suas mãos aos livros e as palavras vão criando conceitos de liberdade na divina mutação do vapor, chuva água e vida.   E, quanto mais livro chove, mais livro aqui se produz porque o saber que reluz faz com que em si se renove. Logo vai se aprendendo com vates, sábios e loucos a cada linha relida, que a dúvida move a vida e que a única certeza é que se sabe tão pouco.